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quinta-feira, 26 de maio de 2011

Quando o amor queima

"Ele entregou-lhe um pacote pequeno e pesado, envolto em papel colorido. O ritmo dos merengues fazia-se ouvir como um embalo. Estavam no centro do País. No coração de Angola. Os deuses deviam estar a vê-los de cima e a chorar por todos eles, os que haviam de sofrer com as feridas da guerra. As feridas emocionais, as reais, as feridas no património. As feridas do adeus. As feridas das saudades. As feridas dos mortos. Dos vivos. De todos. A Terra girava e eles ali estavam em Silva Porto, um dos nove municípios do Bié. Espalhados à volta estavam o Andulo, Chinguari, Camacupa, Chitembo, Kunhinga, Nharêa, Kuemba, Catabola, numa área total de 70 mil quilómetros quadrados. Tudo no mundo continuava a sua evolução e eles ali, com o tempo parado, suspenso, à espera de um milagre que fizesse mudar o rumo das coisas. Nunca, no entanto, julgaram que seria tão mau. E porque é que naquele dia, naquele instante, em que o mundo parou para bombear o seu amor, eles não combinaram uma estratégia para uma eventual tragédia. Ela abriu o pacote, viu a caixa de jóias, linda, maciça, perfeita. Quase julgou que João lhe entregava o próprio coração ali dentro. Deixou sair as lágrimas que estavam presas dentro de si e chorou no ombro dele, em silêncio, pelo tempo que lhe apeteceu. Mas não falaram do que ia dentro deles, dos medos. Falaram apenas do amor que os unia. Isso parecia bastar-lhes, naquele momento.
    "E assim Portugal entrega Angola aos angolanos, depois de quase 500 anos de presença, durante os quais se foram cimentando amizades e caldeando culturas, com ingredientes que nada poderá destruir. Os homens desaparecem, mas a obra fica. Portugal parte sem sentimentos de culpa e sem ter de que se envergonhar. Deixa um país que está na vanguarda dos estados africanos, deixa um país de que se orgulha e de que todos os angolanos podem orgulhar-se".
Palavras do Alto Comissário e Governador- Geral de Angola, almirante Leonel Cardoso, no dia 10 de Novembro de 1975, proclamando a independência de Angola em nome do Governo Português. A medida entrou em vigor no dia seguinte e foi a oficialização da entrega do País ao povo angolano. Por esses dias, nos meses anteriores e subsequentes meio milhão de portugueses nas colónias tentavam regressar a Portugal, em fuga. João e Helena fugiram para sítios diferentes e encontraram refúgio em países distintos. Foi um desencontro de uma vida. A dor mais pungente- deixar amigos, deixar a terra-mãe, deixar para trás o amor".
Retornados das colónias


*Excerto de uma história de vida. 

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