"Teria cerca de 80 anos e tinha sido chamado pelo IPO, depois de ter feito uns exames pedidos pelo médico de família. Não sabia porque estava ali. Que se sentia bem. Tinha ido sozinho, de autocarro. Estava ali sentado, numa espera interminável, com um papel que tremia nas suas mãos. Tremores da idade, de desamparo, de medo não. A inocência não conhece o medo.
–Sou sozinho. Nunca casei... – disse, enquanto recordava alguns episódios avulsos da sua vida de sobrevivência. As velas sopradas de um bolo que alguém ofereceu. Dos poucos bolos que teve na vida.
Não tem filhos, ninguém. Um par de amigos. Um taberneiro, um vizinho. Conhecidos do bairro. Por isso anda só para todo o lado. Provavelmente foi também sozinho que escutou dos médicos que tinha cancro num qualquer órgão. Com espanto. Com assombro. Foi também só que apanhou um autocarro tardio e rumou a casa a tentar perceber porque tipo de arrebatamento do destino foi traído. Sozinho a comer. Sozinho a apanhar o autocarro, de três em três semanas, para ir fazer a quimioterapia. E regressar, a hora incerta. Ou deixar-se desistir. Adiada a morte, acentuada a solidão. Talvez venha a morrer de mão dada com uma enfermeira ou uma auxiliar de acção médica. Sim, há cancros mais ruins do que outros. A solidão é o pior de todos".
*Mais um fragmento real de uma vida que gostaríamos tivesse sido diferente.
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