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quarta-feira, 2 de março de 2011

Mais devagarinho, por favor

"Ontem perguntei-me quanto tempo demorava a mudar uma vida. Creio que apenas um segundo, se a decisão vier de dentro. Nos últimos anos, desde que a tecnologia criou várias comunidades virtuais dentro da nossa comunidade, noto que o meu relógio anda mais depressa. Sinto-lhe os tiquetaques apressados nas minhas têmporas anestesiadas. Tic... Tac... Tic... Tac... Tic... Tac. Às vezes, chego ao fim do dia e sinto-me cansada de não fazer grande coisa. Andei no Facebook e, pelo meio, trabalhei um bocado. Li muita coisa. Pouca coisa que interesse para o meu bem- estar ou vida cívica. Passaram-se umas horas desde a manhã e eu rendi muito menos do que podia. No entanto, estou exausta, talvez um pouco vazia. Dentro da minha cabeça, cruzaram-se os amigos, os conhecidos, os de infância, os do bairro, os do trabalho, depois do outro trabalho e ainda os outros, aqueles que cruzaram a nossa vida em virtude desse tal e daquele emprego, desde colegas a relações profissionais de toda a sorte. De certa forma, todos falaram comigo. Muitos falaram-me sobre temas que eu não queria ouvir; outros disseram coisas de que não gosto, houve os que publicaram notícias que eu não queria ler ou músicas que não me dizem nada e só me fazem ter pena por tão fraco gosto musical. 

Depois há as banalidades de todos os dias, daquelas que se dizem no elevador e, por outro, as partilhas de sentimentos e desabafos de que ninguém realmente quer saber, a não ser por curiosidade ou porque, quase sempre, sente ansiedade e não se quer sentir só. Racionalmente, sinto que sei isto. Mas o Facebook, nas suas vantagens óbvias, é como os cigarros: fazem mal e sabem bem para alguns, fazem e sabem mal para outros. Eu até gosto do Facebook e das pessoas. Só não gosto é das inundações, dos fluxos, dos tsunamis informativos. Ninguém comporta tanta informação sem se ressentir, sem se isolar, julgando-se muito requisitado, admirado, lido, interessante. Dali a segundos, já ninguém se lembra o que postou A, B e C ou se morreram quatro ou dez pessoas no corrente dia. E de quê, já agora? Quanto mais alienados, mais vorazes.





O relógio já andava depressa depois dos 18 anos, agora galopa, frio, enchendo-nos a cabeça de túneis vazios e húmidos. Os meus túneis vazios e húmidos. O relógio apressado é uma doença e as pessoas não sabem. O cansaço do vazio é uma doença e as pessoas não sabem. A síndrome de privação seja de que vício for é outra doença e as pessoas sabem mas não se importam realmente, até que os seus túneis vazios e húmidos se enchem de tristezas e de sentimentos novos para os quais ainda não há nome. Posto isto, um dia medi os meus níveis de ira e irritabilidade e reparei que andava tudo desregulado. A minha capacidade de empatizar ou de sentir solidariedade também tinha diminuído um pouco, resultado da banalização das vidas e dos problemas alheios. Não se pode sentir pena o dia todo, sem correr riscos pessoais. Mas tudo isto pouco me importa. Dos seus túneis cada um trata. Mas nos meus, em vez das flores da Primavera a despontar, estavam a reproduzir-se ratos, contentes pela humidade e pelos despojos deixados ao acaso.
E um dia, num dia como outro qualquer, em que senti a minha desconexão comigo própria no auge, não tomei uma decisão. Assumi-a de uma vez. Deitei o relógio ao chão e pisei-o. Depois saí para a rua e fui ver o sol. Oh, chamem-me inocente mas fui ouvir os pássaros e os zzzzzz apaziguadores das abelhinhas. Fiz de propósito e meti-me pelas ruelas mais estreitas da minha terra. Optei por ir pelos locais onde pudesse ouvir os meus pés a pisar folhas e paus secos. Parei aqui e ali para ver as flores das giestas, as papoilas, as mimosas, algumas flores silvestres roxas cujo nome desconheço, chamadas por este quase- quase calor primaveril. Fiquei uns segundos a ver uma velha roda de um moinho que alguém pôs à venda. Passei por vários cães e todos se puseram a ladrar uns para os outros em rede (salvo seja), quem sabe avisando-se uns aos outros que um intruso ia passar. Era preciso cautela. Cautela comigo. Mas eu não. Nunca tive medo de cães. Na realidade, nem eles de mim. Continuei a caminhar sob o sol fraco da manhã. Fraco, mas luminoso. Fui à Igreja e fiquei lá menos de cinco minutos. O suficiente para encher o peito de ar e de outras coisas boas. Vi as casas rurais, a lenha de uns e de outros, os vasos, as cameleiras a largar camélias para o chão e alguns trabalhadores aqui e ali a fazer arranjos. Vi ovelhas a pastar, mesmo ao lado de um restaurante conhecido da região onde há sempre leitão, picanha e papas de sarrabulho.

A dada altura, já não sabia como chegar à estrada principal, mas segui o barulho dos carros e atalhei por onde me apeteceu. Parei num mercadinho cheio de gente velha e comprei kiwis, tangerinas, água, peixe fresco e leite. Despedi-me sem pressas e ainda troquei dois dedos de conversa com a dona, gente da minha comunidade real que tão bem conheço e tantas vezes descuro.  Bem, não sei se descurar será a palavra certa, uma vez que o meu gosto pela conversa me leva a conhecer muito bem a rede que compõe a minha vida no campo.  Andei o suficiente para uma primeira vez. Talvez dois quilómetros. Voltei a casa, tomei um banho, comi uma tangerina e vim trabalhar. É só isto, mais nada. Agora vou trabalhar. O Facebook? Lá está, assim como os meus amigos. E eu lá estarei, para o que for preciso. Eles sabem onde me encontrar e vice- versa. E não se surpreenderão se no caminho para minha casa, virem alguma má energia excedente que se volatilizou e se fez Natureza. Não passou para ninguém. Desapareceu".




Denisa Sousa/Projecto Cyrano

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