(...)"O telefone tocou. Pareceu-lhe ter tocado. Palpou-o entre a névoa em cima do sofá cheio de lixo, aquele sofá que estava sempre limpo imaculado e agora desaparecia debaixo de baba humana e nódoas de bebida. Não atendeu o telefone, o número era-lhe vagamente familiar, terminava em 65 como o que, desde há uns tempos, lhe ligava insistentemente todos os dias, a várias horas. Despertou às 6h00 e ficou imóvel a olhar o tecto, à espera do preciso segundo em que a memória lhe reavivasse a angústia. O gelo que se pousaria no peito, como um peso de toneladas, era a única coisa que os seus sentidos lhe permitiam para se assegurar que ainda estava vivo. Estaria? Nas poucas horas em que lhe era possível apagar a mente, em sonhos realistas em que se julgava ainda como antes, conseguia um pouco de paz ilusória, tão breve que duraria apenas o suficiente até as frinchas da persiana deixarem entrar os primeiros sinais de luz. Tinha a boca seca como papel de celofane, não conseguia discernir que parte do corpo lhe doía, nem que membro havia de mover primeiro antes de chegar a torrente de lágrimas que o afogava vivo em cima dos lençóis sujos de outras lágrimas (...).
Sem comentários:
Enviar um comentário