- Dói-me aqui- disse ela, apontando o coração. - Dói-me muito. Dói-me também aqui... aqui... aqui- apontou, lentamente, por todo o corpo. - Não ouço bem. Parece que estou no fundo de um túnel. E tenho o peito tão cheio de água que acho que vai rebentar e toda eu vou a correr para o mar, misturar-me nele.
- Pára lá com as fracas metáforas. O que é que tens?- perguntou-lhe a amiga.
- Sei lá. Talvez tenha sido uma avalanche que me passou por cima sem eu ter dado conta. Mas acho que ainda estou soterrada. Está muito frio aqui em cima, por dentro, no interior das veias, nas artérias, debaixo das unhas, dentro dos olhos, na raiz dos cabelos, na palma das mãos. E nos lábios. Dentro dos lábios.
- Mas quem te magoou assim tanto, rapariga?
- Primeiro pensei que tinha sido ele.
- Ele quem?
- Ele, o homem que me encheu os olhos de sol e depois apagou a luz.
- E?
- Cheguei à conclusão de que não foi ele que me magoou. Fui eu mesma. E sabes? Dói-me mesmo aqui, aqui, aqui, aqui... Será que alguma vez vai deixar de doer?
- O que te dói é a ilusão desfeita?
- Não. Ninguém me iludiu. O que me dói é esta sensação de ter chegado ao fim.
- Da vida?
- Não. Da gaiola. Já lhe dei a volta vezes sem conta, não me apetece começar tudo outra vez. Não tenho céu para voar. Sinto que nunca mudarei. Quero subir para ver o que está do outro lado, mesmo que vá de encontro ao abismo.
- És doida, vá.
- Sim, sou. Tenho a doidice da liberdade.